Regresso



As memórias me alimentavam, visto que o pão eu já não tinha mais. Meus vícios e orgulhos consumiram não apenas tudo quanto eu tinha, mas eu já podia sentir consumir tudo quanto eu era, e não podia simplesmente ver-me em migalhas. Lembrava da minha infância, regada de amor e cuidado, dos ensinamentos que pareciam-me enfadonhos, e que me fizeram almejar a liberdade. Mal sabia eu que a liberdade verdadeira estava condicionada à obediência.. Isto era ser livre? Repetia em um grito interior, questionando-me e culpando-me da minha atual condição. A minha tentativa por liberdade foi na verdade um esvair de forças cavando um buraco, onde eu mesmo me enterrei. 
Olhava cada parte de mim com um profundo amargor, minhas mãos.. sujas, rudes, pareciam tão belas quando cheias de dinheiro dentro e anéis, vi tudo escorrer pelos dedos. Meus pés, nem mais um sapato sob eles, sentia na pele o chão duro e frio tal como a vida que a liberdade me concedeu; os mesmo pés que haviam andado errantes ao lado de muitos amigos junto com as posses se foram, andado em lugares de pouca luz, em lugares de muito movimento, em lugares de passos apressados e dançantes.. esses pés encontravam-se russos de poeira, e doloridos de tanto andar a troco de nada. Corri atrás do vento. Minhas roupas eram as que me restavam, minha aparência era abatida e mal cuidada. Se não fossem minhas lembranças me apontando para quem de fato eu era, pelas evidências externas eu não saberia para onde retornar. As minhas lembranças geravam em mim um sentimento de arrependimento e traição: o traidor era eu. Troquei o que eu tinha pelo que eu queria ter, e a experiência me mostrara que não valeu a pena. Seria tarde para regressar? Não saberia se não tentasse. Não ter que carregar bagagem nesse momento foi um alívio, já era peso demais carregar meus destroços interiores.
Não me permiti ter tempo sequer de refutar a ideia do regresso, assim que a tive levantei e segui o caminho. Em minha mente eu tentava esboçar justificativas para dar um pedido de desculpas que parecesse bom o bastante, não sabia se me receberiam de volta.. Eu sabia que não era bem vindo, tamanha desonra causei. Mas meu pai sempre foi um homem generoso, quem sabe não me deixasse tornar um de seus empregados. Nenhuma justificativa em minha mente parecia ser bem elaborada e fundamentada, a verdade é que não haviam justificativas, queria conseguir provar meu arrependimento, mas também não era possível. Tudo que eu podia provar era minha mediocridade. As memórias no caminho mais uma vez me alimentavam, era quase possível ver o meu vulto em minha lembrança correndo bem ali ao lado rumo aos braços que me esperavam na porta de casa, eu sabia que desta vez os braços não estariam abertos lá, e não tinha ânimo para correr.. na verdade, caminhava cabisbaixo rumo ao que seria minha sentença. 
Cheguei. A fachada da casa era muito familiar, e meus batimentos acelerados me indicavam que eu jamais deveria ter saído dali. Bati palmas, e foram os segundos de espera mais longos da minha vida. Mais longos que as noites em claro sob efeito da falsa alegria, mais longos que os abraços furtivos dados à meia luz, mais longos que o tempo em que o que eu tinha estava em minhas mãos, mais longos até do que minha própria dignidade. A maçaneta girou, e na minha frente estava o dono dos braço que costumavam me esperar estendidos quando eu ainda era uma criança. Abaixei a cabeça e fechei os olhos esperando ouvir as palavras de baixo escalão que eu merecia.. ouvi soluços. Senti os braços que eu tanto amava me abraçando outra vez e as lágrimas quentes do meu velho pai me pesando a camisa suja. Suas mãos faziam cafuné em meu cabelo e me apertavam forte contra seu peito como quem não acredita que eu estava mesmo ali. Não pronunciei uma palavra, nem sequer uma justificativa, não pedi desculpas, e mesmo assim ele me envolveu. Meu nó na garganta já não era mais de medo, mas de constrangimento. Fora necessário isto tudo para eu entender o que é ser filho? Lembro-me ter ouvido de uma outra filha pródiga no caminho que seu pai celebrou matando o único Cordeiro que tinha em um dia que não era festa, que não era casamento, que não era data especial.. apenas para celebrar sua volta. Lembro-me de por segundos invejar ela ter um pai tão bondoso, e pensar "Pra um pobre homem isto conta como um grande prejuízo.", mas a verdade é que o pai não tem prejuízos com quem é filho, e eu estava entendendo isto. 
Seus braços ternos e amorosos me conduziram ao interior da sala, e minhas sandálias ainda estavam guardadas ao lado da porta como sempre era de costume. Me calçou os pés e me conduziu à mesa, eu estava chegando bem na hora do jantar. Eu parecia destoar da limpeza ao redor, minha sujeira e roupas surradas não combinavam com a mesa tão bem posta que parecia estar esperando por mim. Não houveram perguntas sobre o que fiz, por onde estive ou com quem andei. Meu velho só me perguntou se eu estava com fome, ao mesmo tempo que puxava uma cadeira para mim já sabendo a resposta. Eu estava sem saber o que dizer.. quantos outros por muito menos me viraram as costas, e eu nesse lar era bem vindo. Precisei me adaptar para ter amigos, precisei ter bens para ser alguém interessante, mas na mesa de meu pai me bastava ser filho. As etiquetas, máscaras, passado.. tudo era dispensável ali. Respondi: "Estou com fome, sim senhor..", e sentei para saciar a fome do corpo, pois era a única coisa que ainda faltava. O amor,  graça, compaixão e misericórdia já haviam saciado a fome da minha alma por uma eternidade inteira.

Fortaleza


Nunca tinha visto algo nem ao menos parecido. Nem em fotos, nem em viagens, nem em livros de história. Diante dos olhos estava uma estrutura imensa, bruta, que parecia se impor ao cenário como o principal a ser contemplado. Ao tato, um concreto gélido e áspero. Não parecia um lugar próprio para moradia, aconchegante ou nem tão pouco familiar. Mais precisamente: assustador, pelo tamanho e pela estética. Maltratada pelo tempo, aquela construção parecia uma fortaleza indestrutível. Pelo tamanho e imponência, me perguntei quem teve tamanho empenho em construir e erguer tudo aquilo. Certamente não apenas uma pessoa, mas se eu me esforçasse mentalmente poderia até voltar no tempo para ver. Quantos anos seriam suficientes para avistar? Muitos, não era uma obra recém acabada, ou abandonada a pouco. Tinha marcas do tempo, aquele pretume da chuva que o surrou, aquele pó fino que fica nos dedos passando a mão nas paredes dali. Me esforcei mais um pouco e consegui ver naquele passado distante sombras como se fossem as silhuetas dos homens empenhando toda sua força braçal para erguer aquela obra. Eram muitos, que faziam a massa, erguiam, moldavam, empilhavam concreto.. Trabalhavam de forma pesada e continuamente, não se ouvia nem sorrisos, nem conversas. Apenas os sons de pedra sobre pedra, de força empenhada, o som dos passos para lá e para cá. Se eu pudesse lhes avisar que ninguém moraria ali, teria lhes poupado o suor, o cansaço e labor. Ergueram, dia a dia, e por algum motivo, pararam. O projeto nunca chegou a ser o que se esperou que fosse, que engenheiro ou arquiteto planejaria algo daquele tamanho para não o tornar ao menos bonito aos olhos? Creio que não era mesmo uma moradia, mas servia muito bem como abrigo.. ou melhor, como esconderijo! Eu tinha plena consciência que ali se escondiam muitos vultos, que não suportavam à ideia de sair para a luz do dia. Fui convidada a adentrar, e ali dentro parecia um templo. O deus quem era? Ainda não sabia, mas a medida que eu andava me sentia tão sufocada, e a insegurança parecia querer me invadir. Percebi que o medo era o dono dali. Os vultos, que se escondiam de qualquer um para não serem identificados, pareciam ser atraídos pela minha presença. Eu andava depressa para conhecer todos os cômodos, mas a cada cômodo que eu passava havia mais um que passava a me seguir. A voz que me levou até ali disse:
- Já vimos o bastante, tá na hora de voltar.
Tão logo disse isso e voltei à minha realidade, conseguia enxergar as cores, e a definição das coisas e não mais apenas vultos. Não precisava mais me esforçar com a mente para visualizar uma imagem por completo, eu estava de volta à realidade. E o que tinha sido aquilo então? Um sonho? Eu toquei, eu senti aquele ar que emanava medo, eu pisei naquele lugar. Eu sabia que em algum lugar aquilo existia, sabia que havia demandado tempo para ser construído, e meu único desejo é que alguém pudesse demolir, esperava que todos aqueles vultos não me seguissem novamente, e destruir me parecia ser a maneira melhor de fazê-los sumir de uma vez por todas. Mas parecia indestrutível.
- É possível? - perguntei.
- Perdão, não entendi. É possível o que? - Quem havia me guiado até lá respondeu.
- Destruir, fazer ruir tudo aquilo.. 
- Sim, que é impossível? Nada, e você sabe disso. Contudo, é uma decisão sem volta.
- Quer dizer que a decisão é apenas minha? Sim, eu quero! Mas em que lugar está aquela fortaleza?
- Em você.
Talvez foi a frase dita com mais mansidão, ternura e amor que já ouvi na vida, mas eu não podia conter as lágrimas, a verdade me fez reconhecer e me lembrar. Eu havia permitido que aquela fortaleza se erguesse em meu interior, aqueles vultos empenhados no trabalho não eram homens! Como eu não percebi ao ver? Eram minhas vivências! Eu as colocava dia após dia a erguer o meu próprio esconderijo! O medo imperava ali, e eu havia permitido isso! Permitir que aquela estrutura fosse destruída (embora eu não pudesse saber como aquilo poderia acontecer) era me livrar de uma vez por toda de todos aqueles vultos do passado que me faziam me esconder dentro de mim, era de uma vez por todas viver em liberdade: livre do medo, da insegurança, das mágoas... Eu não podia ignorar a verdade do que vi, e não podia ignorar que aquela obra toda precisava ser destruída de vez. Havia sido garantido que poderia se desfazer, bastava eu querer. Não sei quanto tempo havia se passado desde que eu havia ouvido a última resposta e ficado com o semblante mudado e imersa em meus pensamentos. Mas eu já sabia o que queria, a voz me dava tanta segurança que não havia porque não permitir o fim daquilo.
- Sim, eu quero. - respondi.
- Vamos até lá então de nov...
Nem terminei de ouvir e já estava lá novamente, eu encarava de frente a obscuridade do que havia dentro de mim, e tive que dizer diante de tudo aquilo a minha decisão. Os vultos pareciam vir em minha direção prontos a se apossar de mim novamente, e eu dessa vez podia identificá-los: o menor era a inferioridade, o mais rígido era o rancor, o sem forma era a insegurança, e o maior de todos ali era o medo. Eles estavam prestes a me tocar quando minha companhia colocou a mão em meu ombro, e eu pude sentir que sua mão era notoriamente mais aquecida do que tudo que me cercava. Me segurou firme junto a ele e foi quando eu vi aquelas ondas, era como o impacto como aquelas de ondas sonoras (embora não houvesse som) que se repercutia e fazia tudo se abalar. Abalou, estalou, rachou, e diante dos meus olhos ruiu. Pó, era tudo o que eu via e que restou, mas bastou um vento para levar tudo aquilo pra longe. As ondas de amor que fluíram daquele homem haviam sido capaz de ruir todo o meu passado e o templo imenso do medo que havia sido construído, e mesmo assim Ele não me era assustador. Me sentia leve, em paz, e completamente livre. Olhei ao redor e vi que não havia mais nada ocupando o cenário.
- No lugar de tudo aquilo, não falta alguma coisa?
E Ele então me respondeu uma verdade, que me acompanha desde aquele dia:
- Não falta nada, se eu estiver sempre aqui. É o suficiente..

Lis Guedes, fevereiro de 2015
Foto: Lis Guedes, Piraquara (Base da Jocum CCL)

Abandono



          A inquietação do meu ser começou a vir de dentro para fora, como um formigamento na ponta dos dedos que se espalha e vira uma dormência em toda a perna, só que justamente o oposto, eu estava adormecida e fui pouco a pouco sendo desperta. Caí em mim, e vi que tudo ao redor era muito convidativo para que eu fosse adiante, mas ainda era desconfortável ter que pensar em deixar as muletas que me sustentaram por tanto tempo. Se eu precisava delas? Isso já era outra história.. a verdade é que eu havia me acostumado com elas. Pouco a pouco minhas desculpas a respeito de meu passado, das minhas mágoas, da minha condição de humana, foram se somando uma a uma, e quando percebi elas haviam se materializado em forma de muleta. E quer saber? Era fácil demais viver com elas. Causava comoção, poderia simplesmente usá-las como justificativa para qualquer tropeço meu, afinal, quem é que não se compadece de alguém que a vida feriu? Era extremamente lógico para mim continuar a viver assim: limitada a andar muito longe, a me desafiar, a descobrir algo novo. Para quê? Era tudo muito confortável, estático e seguro demais. E eu me perguntava: "Que há de errado nisso?". Alguém dentro de mim me respondeu: "TUDO!". De onde vinha, e porque ousava me confrontar assim? Não sei. Mas a voz disse que tudo estava errado. Busquei mais justificativas em minha memória, e resolvi tirar o foco de mim, afinal, tantas e tantas pessoas também estavam de muletas por aí. Acho que ninguém parecia se importar em viver uma vida limitada, covarde e medíocre sustentando sua existência (ou apenas sobrevivência humana) em cima de desculpas e justificativas. Por que logo eu tinha que mudar de vida? Por que eu tinha que decidir assumir os riscos? Minha limitação de locomoção não me permitia ver se alguém andava livremente por aí, no raio mais próximo todos pareciam não caminhar com as próprias pernas e nem se importar com isso.
          Mesmo com todos esses apontamentos, eu não podia ignorar aquele grito interior que me denunciou. Resolvi enfrentar e ir em frente, se eu mesma não tentasse não poderia descobrir se havia plenitude além daquela rotina enfadonha. Me desvencilhei das muletas, e a dor de um primeiro passo sem elas doeu mais do que qualquer um dos motivos que as construíram. Doía sentir a realidade sob meus pés, doía sentir a verdade a meu respeito, doía perceber que eu sabia andar o tempo todo e que a única responsável por ter entrado naquela condição era eu mesma. Respirei fundo parecendo buscar no ar uma força para não me apegar novamente ao que eu havia acabado de abandonar. Eu precisava prosseguir, precisava agora aprender a caminhar com a força das pernas, havia um caminho pela frente. De início cambaleante, quase me arrastando pelo chão apoiando as mãos no solo. Aos poucos consegui ficar em pé caminhando devagar, eu tinha certeza de que se tão somente não desistisse dentro de dias poderia estar correndo. Viver sem as muletas me fazia correr mais riscos, assumir todos os danos, sofrer mais perdas. Mas a diferença era clara: era viver, e não apenas existir. Era pisar no chão sentindo a terra, era olhar pra frente e ver um caminho imenso a ser percorrido. Minhas muletas não eram as culpadas da minha covardia, era tão somente eu. E a coragem agora parecia me invadir, mesmo perdendo o controle de tudo, mesmo rumo ao desconhecido, o sentido de tudo era muito mais latente e palpável. Meu novo mundo parecia um remédio às feridas interiores, enfrentá-las gerava dor e ao mesmo tempo cura. Eu estava renascendo. Andei aos poucos até perceber que meus pés estavam dentro de um caminho estreito, já aberto por alguém. Não sabia o que me reservava a frente, mas não queria mais aquela realidade antiga. Mirei com o olhar o campo aberto atrás de mim onde eu havia abandonado as minhas antigas pernas, e percebi que logo ali do lado haviam ficado também todas as máscaras. Sem desculpas e sem falsas aparências eu parecia apta a adentrar naquele caminho estreito, onde só havia espaço para eu mesma sem acessório ou adereço a mais. Algumas vozes mais experientes que já trilhavam aquele caminho me sussurraram algumas coisas, uma frase em especial eu gravei bem: "Bem vinda, caminhar com Ele é uma grande aventura." Com ele quem? Eu sabia muito pouco ou quase nada dessa nova vida, mas me parecia que se eu continuasse caminhando uma hora eu ia descobrir. Aventura? A coragem crescente em meu interior já era o suficiente para aceitar. Acho que naquele dia, se isso é lá algo explicável, eu morri e nasci. Tão logo decidi pelo abandono, morreu tudo que não fazia parte de mim. Mas de tudo que perdi, tive certeza de que não se comparava ao que ganhei: permanente e Eterna Vida. No lugar das muletas, eu agora caminhava sobre essa certeza, que daquele dia em diante foi o suficiente para que eu nunca parasse de caminhar.

Lis Guedes, janeiro de 2015.

Imagem: Lis Guedes, Frade-RJ

Títulos


        Na cidade mais quente que já estive na vida, num lugar distante de povo acolhedor, ouvi as palavras de um homem que tinha o coração em chamas. Creio que eu poderia ficar dias e dias a ouvi-lo, parecia que enquanto ele falava um rio de humildade, compaixão, amor, servidão inundava o ambiente, a ponto de fazer nossos olhos inundarem e transbordarem de lágrimas. As palavras eram mansas, calmas, ele até falava pausadamente; mas ao sair de sua boca me atingiam com violência, minha mediocridade humana estava sendo o alvo. Sentia-me bombardeada: minhas desculpas, meu conformismo, meu achar orgulhoso de que já fazia o bastante, minha rasa compaixão estavam em declínio dentro de mim, tudo parecia ruir. 
        A vida daquele homem fazia uma concordância com suas palavras, que as tornavam poderosas. Ele não era um super herói, era um senhor inteiramente humano, de cabelos e barbas brancas, pele avermelhada pelo sol, um nordestino daqueles que faz parecer pra você que a vida é o que há de mais encantador, e não negava que para ele a vida era mesmo um encanto. Seu coração era inteiramente jovem, sua disposição e vigor mesmo com a idade avançada eram de inspirar e animar até o mais jovem que houvesse naquele lugar. Éramos cerca de trinta pessoas o ouvindo, e creio que o sentimento era unânime: não queríamos que aquele homem fosse embora! Sua aula da tarde já estava a acabar, vez por outra eu fitava minha amiga ao lado para me certificar de que não era a única em lágrimas simplesmente por ouvi-lo, todas as vezes que olhei foi contestado que de fato não era.
        Terminada a aula da tarde, procurei-o enquanto ele arrumava algumas de suas coisas na sua mochila de lona, companheira de suas peregrinações. Interpelei-o:
- Pastor Carl..
Mal consegui terminar de pronunciar seu nome e ele me interrompeu:
- Do que me chamou?
- Pastor Carlinhos. - respondi com um certo receio.
- Ah sim, então, pode dizer o que você tem a dizer, aluna.
Ele falou a palavra aluna com uma certa entonação, e eu demorei um pouco a entender o que eu tinha dito de tão errado assim. Ele de fato era um pastor, que aliás, rodava não apenas sua região mas o Brasil todo a falar de suas peregrinações e experiências com missões.. Fiquei mesmo sem compreender o erro, até que ele notou minhas sobrancelhas levemente levantadas e resolveu esclarecer.
- Qual o seu nome? - disse ele me fitando com um olhar gentil.
- Lis.
- Isso é tudo que você é. - Disse com um sorriso generoso como se eu fosse a pessoa mais encantadora do mundo naquele momento. - E eu sou o Carlinhos, isto é o que sou. Não precisa me chamar de pastor, é só um título.
Minha mente pareceu fervilhar, um senso de valor a respeito de quem eu era (simplesmente por ser) sem precisar de títulos parece que veio como um estalo. A vida e as palavras daquele homem não eram fascinantes porque ele tinha estudado muito (embora o tenha feito), porque tinha feito muitas coisas por outras pessoas (embora isso pudesse resumir sua vida), mas simplesmente porque ele era Carlinhos, porque ele tinha descoberto seu valor no Eu Sou, e então agora era uma responsabilidade dele fazer outras pessoas serem tratadas pelo valor que merecem simplesmente por ser alguém.
A conversa seguiu, depois de sua resposta eu dei apenas um sorriso e continuei as perguntas que tinha a fazer sobra a aula. Mal sabe ele que aquele diálogo inicial me roubou o sono. Dias a fio pensando em como algo tão simples faz tanto sentido. Geralmente quando conhecemos alguém perguntamos o seu nome para fins de comunicação, e minha descoberta era de que isto estava errado. O que uma pessoa tem de mais importante a me dizer sobre ela, não é o que estuda, como trabalha, qual sua religião ou cargo, mas quem ela é. 
         Quem eu sou? Era só isso que o Carlinhos queria saber para dialogar comigo me tratando como alguém de extremo valor e importância. Era só isso que o Mestre precisava saber para abraçar o excluso, e curar o enfermo. Era só isso que eu precisava saber para aprender a amar. Rico, pobre, doutor, leigo, judeu, cristão.. tudo que eu precisava era aprender a ver além das roupagens, além da maquiagem, além dos títulos ou falta deles, além da conta bancária e modo de devoção religiosa. Ser-humano, percebi ali na definição que não é necessário mais nada, simplesmente é, e isso é tudo que preciso para ter motivos de amar. De toda sua aula, aquela lição sem dúvidas me foi a mais importante.

Lis Guedes, janeiro de 2015

Imagem: Lis Guedes - Chapadinha/PI

À deriva


Sentia-me um barco sem rumo, e de fato eu o era. Por descuido, desleixo, não sei precisamente, o que sei é que a maré encontrou-me desancorado, e me levou. Tornei-me então apenas um amontoado de madeira rústica, grosseira, suja.. sendo jogado de um lado para o outro. Sem dono, sem nome, sem rumo, aliás, meu rumo parecia ser apenas para cada vez mais longe do cais. Os barcos pintados, revestidos, equipados, pareciam-me seguros e úteis. Que utilidade tinha eu? Nenhuma a não ser cada vez ser mais castigado pelo sol e pelo mar revolto. Não queria ser um barco como outro, não mesmo; mas havia algo que eu queria: saber pra que então alguém teve o trabalho de me elaborar, arquitetar, construir, pregar tábua sobre tábua. Para esse fim? Para que os dias de sol intenso rachassem minhas tábuas e me fizessem estalar? Para noites interruptamente tempestuosas fazendo-me apodrecer e sacudir? Se ao menos eu pudesse parar nas mãos desse inventor novamente, talvez ele faria uns reparos e me colocaria no meu lugar de utilidade. Mas parecia ser tarde demais, percebi que já não apenas estava sendo levado, mas agora minhas corrosões, os sulcos que o sol me causaram e o apodrecimento devido às chuvas me faziam afundar. Das memórias que me restam além desses longos dias de exaustão, haviam relances de algumas boas experiências que vivi. Lembro precisamente de um homem de sandálias de couro bem surradas que por vezes sentava em mim para ensinar as pessoas, de alguns sujeitos atrapalhados que pareciam não confiar nele, de suas pescarias, risadas, creio que nenhum deles se importaria em ter um barco sem uma boa tintura como eu, eu era como eles; mas eu estava longe o bastante para ser resgatado.  Era pelo menos o que eu achava até o sujeito das sandálias de couro se aproximar remando em outro barco, e exclamar:
- Te encontrei!
Creio que toda intensidade da minha frustração anterior foi superada pela minha incompreensão. Não haviam tantos barcos úteis, bons? Por que eu? Por que ele enfrentou essa distância toda apenas para levar de volta ao cais e a utilidade esse amontoado de madeira apodrecida? E mesmo sabendo que ele não ouvia meus pensamentos, parecia que falando ao vento ele me respondia:
- Não investi tanto tempo fazendo esse camarada para ele acabar assim, tem muito trabalho e utilidade para ele, como senti falta.. É tão mais fácil remar nele, sentar bem acomodado e ensinar depois...
Se é que entendi bem, com aquele homem eu tinha minha função, meu lugar, meu valor. Se barcos suspirassem, eu certamente faria aquilo naquele momento. Aquele homem respondia todas as minhas perguntas existenciais. Minha dúvida naquele momento era outra, o que me impediria de voltar a ser sem rumo, se bastou um vento para me levar anteriormente? Sei que com ele eu estava seguro, mas me amedrontava a possibilidade de ser mais uma vez levado mar à dentro sozinho. Reconhecia-me incapaz, incapaz de salvar a mim mesmo, de manter-me seguro, incapaz de sobreviver longe do dono daquelas sandálias surradas. Fomos chegando à margem, ele desceu do barco e foi me puxando pela corrente que tinha pregado em mim. Pegou a ponta daquela corrente e prendeu em um prego bem firme. Não sei se foi o mesmo prego que mais tarde furou seus pés e mãos, mas uma coisa ficou clara naquele dia: minha incapacidade pode ser bem assegurada no poder de seus cravos. Mesmo que ele não estivesse ali presencialmente por alguns instantes, a marca visível e poderosa de seus cravos poderia-me manter seguro do perigo até sua volta.

Lis Guedes, janeiro de 2015

Imagem: Lis Guedes, Lagoa de Imboassica - Macaé/RJ