Regresso



As memórias me alimentavam, visto que o pão eu já não tinha mais. Meus vícios e orgulhos consumiram não apenas tudo quanto eu tinha, mas eu já podia sentir consumir tudo quanto eu era, e não podia simplesmente ver-me em migalhas. Lembrava da minha infância, regada de amor e cuidado, dos ensinamentos que pareciam-me enfadonhos, e que me fizeram almejar a liberdade. Mal sabia eu que a liberdade verdadeira estava condicionada à obediência.. Isto era ser livre? Repetia em um grito interior, questionando-me e culpando-me da minha atual condição. A minha tentativa por liberdade foi na verdade um esvair de forças cavando um buraco, onde eu mesmo me enterrei. 
Olhava cada parte de mim com um profundo amargor, minhas mãos.. sujas, rudes, pareciam tão belas quando cheias de dinheiro dentro e anéis, vi tudo escorrer pelos dedos. Meus pés, nem mais um sapato sob eles, sentia na pele o chão duro e frio tal como a vida que a liberdade me concedeu; os mesmo pés que haviam andado errantes ao lado de muitos amigos junto com as posses se foram, andado em lugares de pouca luz, em lugares de muito movimento, em lugares de passos apressados e dançantes.. esses pés encontravam-se russos de poeira, e doloridos de tanto andar a troco de nada. Corri atrás do vento. Minhas roupas eram as que me restavam, minha aparência era abatida e mal cuidada. Se não fossem minhas lembranças me apontando para quem de fato eu era, pelas evidências externas eu não saberia para onde retornar. As minhas lembranças geravam em mim um sentimento de arrependimento e traição: o traidor era eu. Troquei o que eu tinha pelo que eu queria ter, e a experiência me mostrara que não valeu a pena. Seria tarde para regressar? Não saberia se não tentasse. Não ter que carregar bagagem nesse momento foi um alívio, já era peso demais carregar meus destroços interiores.
Não me permiti ter tempo sequer de refutar a ideia do regresso, assim que a tive levantei e segui o caminho. Em minha mente eu tentava esboçar justificativas para dar um pedido de desculpas que parecesse bom o bastante, não sabia se me receberiam de volta.. Eu sabia que não era bem vindo, tamanha desonra causei. Mas meu pai sempre foi um homem generoso, quem sabe não me deixasse tornar um de seus empregados. Nenhuma justificativa em minha mente parecia ser bem elaborada e fundamentada, a verdade é que não haviam justificativas, queria conseguir provar meu arrependimento, mas também não era possível. Tudo que eu podia provar era minha mediocridade. As memórias no caminho mais uma vez me alimentavam, era quase possível ver o meu vulto em minha lembrança correndo bem ali ao lado rumo aos braços que me esperavam na porta de casa, eu sabia que desta vez os braços não estariam abertos lá, e não tinha ânimo para correr.. na verdade, caminhava cabisbaixo rumo ao que seria minha sentença. 
Cheguei. A fachada da casa era muito familiar, e meus batimentos acelerados me indicavam que eu jamais deveria ter saído dali. Bati palmas, e foram os segundos de espera mais longos da minha vida. Mais longos que as noites em claro sob efeito da falsa alegria, mais longos que os abraços furtivos dados à meia luz, mais longos que o tempo em que o que eu tinha estava em minhas mãos, mais longos até do que minha própria dignidade. A maçaneta girou, e na minha frente estava o dono dos braço que costumavam me esperar estendidos quando eu ainda era uma criança. Abaixei a cabeça e fechei os olhos esperando ouvir as palavras de baixo escalão que eu merecia.. ouvi soluços. Senti os braços que eu tanto amava me abraçando outra vez e as lágrimas quentes do meu velho pai me pesando a camisa suja. Suas mãos faziam cafuné em meu cabelo e me apertavam forte contra seu peito como quem não acredita que eu estava mesmo ali. Não pronunciei uma palavra, nem sequer uma justificativa, não pedi desculpas, e mesmo assim ele me envolveu. Meu nó na garganta já não era mais de medo, mas de constrangimento. Fora necessário isto tudo para eu entender o que é ser filho? Lembro-me ter ouvido de uma outra filha pródiga no caminho que seu pai celebrou matando o único Cordeiro que tinha em um dia que não era festa, que não era casamento, que não era data especial.. apenas para celebrar sua volta. Lembro-me de por segundos invejar ela ter um pai tão bondoso, e pensar "Pra um pobre homem isto conta como um grande prejuízo.", mas a verdade é que o pai não tem prejuízos com quem é filho, e eu estava entendendo isto. 
Seus braços ternos e amorosos me conduziram ao interior da sala, e minhas sandálias ainda estavam guardadas ao lado da porta como sempre era de costume. Me calçou os pés e me conduziu à mesa, eu estava chegando bem na hora do jantar. Eu parecia destoar da limpeza ao redor, minha sujeira e roupas surradas não combinavam com a mesa tão bem posta que parecia estar esperando por mim. Não houveram perguntas sobre o que fiz, por onde estive ou com quem andei. Meu velho só me perguntou se eu estava com fome, ao mesmo tempo que puxava uma cadeira para mim já sabendo a resposta. Eu estava sem saber o que dizer.. quantos outros por muito menos me viraram as costas, e eu nesse lar era bem vindo. Precisei me adaptar para ter amigos, precisei ter bens para ser alguém interessante, mas na mesa de meu pai me bastava ser filho. As etiquetas, máscaras, passado.. tudo era dispensável ali. Respondi: "Estou com fome, sim senhor..", e sentei para saciar a fome do corpo, pois era a única coisa que ainda faltava. O amor,  graça, compaixão e misericórdia já haviam saciado a fome da minha alma por uma eternidade inteira.

Um comentário:

  1. Nossa cara. Incrivel. Acho que uma das maiores dificuldades é trazer toda a imaginação do leitor para dentro do cenário e vc faz isso com delicadeza cara. Sou sua fã, na boa. Mandou muito, texto pesado.

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